Juiz de Fora

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Teleco, o coelhinho (ou por que Rubião não se inspirou em Kafka)



É muito comum se afirmar que Murilo Rubião (1916-91), um escritor brasileiro de contos "fantásticos" e do absurdo, já resenhado aqui, teria se inspirado em Franz Kafka (1883-1924), autor de Metamorfose e de O processo, que dispensam maiores apresentações. A comparação - e a suspeita - são mais do que justas, embora o escritor mineiro tenha dito que não havia ainda lido Kafka quando da publicação de seus primeiros contos (1947). Após ler quase toda  a obra completa do escritor mineiro, e também os dois clássicos do escritor tcheco, vou deixar aqui um trecho que demonstra, a meu ver, que Rubião escrevia coisas estranhas ao universo sombrio do habitante da Europa central do início do século XX.




Teleco, o coelhinho

- Moço, me dá um cigarro?

A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
- Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
- Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
- Você não dá é porque não tem, não é, moço?



"Você não dá é porque não tem, não é, moço?"!!!

Esta pergunta, esta autopiedade, esta autocomiseração, este sentimento de que eu posso até ficar sem aquilo que eu quero, o que eu não posso suportar é o outro não gostar de mim, sem mais nem menos, assim, de graça, não ir com a minha cara, isto é a ideologia do homem da terra brasilis. Logo, podem não me dar escola, saúde, trabalho, moradia digna, comida, diversão e arte, nós podemos passar sem, o que não suportamos é não gostarem de nós, nós precisamos de um presidente que nos ame como jamais nos amaram, rs...




2 comentários:

  1. Olá Enaldo!

    Cheguei aqui por acaso, mas não é por acaso que voltarei. Blog muito legal. Parabéns.

    Adoro realismo mágico. Adoro Murilo Rubião. Sua escrita tem um brilho que me encanta, mormente sua visão crítica da sociedade. E o rigor da linguagem? Absolutamente perfeito. Esse conto que você postou, eu gosto demais! “Teleco, o Coelhinho” é um conto emblemático da obra de Rubião. E, antes que eu esqueça, vamos combinar, Rubião e Kafka (q tbm gosto mto) não têm nada a ver um com o outro, nada mesmo.

    Acho impressionante como Rubião consegue mostrar tudo o que lhe passa pela cabeça, somente utilizando metáforas! Veja só nesse conto, (você já viu, óbvio) a animalização da humanidade, o homem deixando de ser um “humano” pra ser um “desumano” é uma coisa muito louca. Só um gênio desse quilate conseguiria fazer essa transposição, essa mágica literária. Metamorfoses metafóricas, se me permite brincar um pouco com as palavras, rsrsrs. Parece-me que nesse conto, Murilo Rubião quis sintetizar, e sintetizou, ao meu ver, o início da criação humana à luz da Bíblia, desde o nascimento-inocência até a corrupção. É. Mas tem uma coisa que me deixa sempre na dúvida, acho que embora os textos bíblicos marquem presença em sua obra, ele não tem muita fé na salvação. Lembro que ao ler seus livros, no final, eu sempre ficava com essa sensação. Sei lá.

    Bom, vou parar por aqui. Nossa fiz um comment gigante! Sorry!!
    Bjssssssss

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  2. Cara Marli Borges,

    seja muito bem-vinda, obrigado por comentar e volte sempre!

    Conheci Murilo Rubião há poucos meses, quando iniciei o mestrado em literatura. Ainda não acabei de ler sua obra completa, mas é fascinante.

    Não vejo Rubião como realismo mágico, e menos ainda Teleco como alegoria ou metáfora, mas você deve estar mais a par do que eu sobre este escritor.

    Quando à questão da religião eu pressinto que Rubião era completamente ateu, assim como Murilo Mendes, e a Bíblia tem uma função irônica, para dar um ar "pesado" às "lições" de seus contos. Escritores do absurdo, da realidade absurda, do estranhamento, etc., não costumam ter religião, e muito lamentam por não poderem acreditar sequer na humanidade. A ausência de fé pode ser muito benéfico a escritores de prosa, aos poetas e outros. A falta de esperança plena já deu grandes textos literários.

    Um abraço, e gostei bastante do seu comentário.

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