Feriados são bons momentos para tomar más decisões. Fui inventar esta jihad (significa empenho ou perseverança, e jamais guerra santa) de ouvir e resenhar os cem supostos melhores álbuns da década elaborados pela NME. Ando há muito ensimesmado com o fato, ou impressão, de que o rock vem caindo de qualidade há um bom tempo. Mas a questão pode ser o declínio da crítica musical ou ter mais a ver comigo mesmo.
A obra Beijar o Céu (Editora Conrad, 2006, 229 páginas), do jornalista inglês Simon Reynolds me foi apresentada por minha filha na hora certa. Reynolds foi e é crítico da música pop, tendo estado à frente do semanário Melody Maker, e já trabalhou para diversas publicações especializadas do Reino Unido e dos EUA. O livro é uma coletânea de suas resenhas, e a introdução é um achado: destrincha exatamente o que me interessa, e me permite melhor sopesar se o problema está no objeto (a música), no veículo (a imprensa) ou no sujeito (o ouvinte, eu). É raro jornalistas poderem colocar para o público o que está por trás de um empreendimento jornalístico. Você pode ler alguns trechos abaixo:
"Sou cria de uma instituição peculiar, um espaço cultural que não existe mais e que, olhando para trás agora, parece bastante improvável: a imprensa musical britânica. (....) a imprensa britânica naquela época - fim dos anos 70, começo dos 80 - estava no auge. A New Music Express - ou NME, como é mais conhecida - vendia 250 mil exemplares por semana, os outros três juntos [Melody Maker, Sounds e Record Mirror], cerca de 350 mil. E o número de leitores destas publicações era muito maior, uma vez que cada exemplar era lido em média por três ou quatro pessoas. Na minha opinião, por essa época os periódicos britânicos também estavam no auge da qualidade crítica (...). Os jornalistas, sobretudo os da NME, corriam todo tipo de riscos, faziam experiências com a forma e, no geral, alimentavam grandes ambições.
Alguns anos depois, quando eu tinha vinte e pouco anos, participei daquela que costuma ser considerada a última "época de ouro" da imprensa musical, que durou do fim dos anos 80 até o começo dos anos 90 e centrou-se principalmente na Melody Maker. A esta altura os periódicos já experimentavam um profundo e duradouro declínio de vendas. Outros veículos de comunicação - desde publicações pop reluzentes como Smash Hits, a revistas mensais de rock, como Q, passando por bíblias do estilo, como The Face - tinham enfraquecido o poderio cultural dos tablóides semanais musicais. Além disso, havia muito mais cobertura musical na TV do que na década de 70. Ainda assim, mesmo com o seu prestígio e autoridade minados, a imprensa musical semanal continuava servindo de arena para idéias e provocações.
Durante este período, a partir de 1974, a NME era o máximo, o jornal cujo veredicto realmente contava, o semanário com boa parte dos melhores textos. A Melody Maker ja tinha sido a número um, a voz do underground "progressivo" do Reino Unido entre o fim dos anos 60 e o começo dos 70. Mas tinha sido prejudicada pelo punk e quando cheguei buscava uma nova identidade. (...) [Posteriormente] A Melody Maker se tornou não só a publicação favorita dos intelectuais, como também a que revelava antes as novas bandas.
A rivalidade entre Melody Maker e NME é uma coisa curiosa, porque os dois semanários pertenciam ao mesmo conglomerado de mídia, a IPC. Durante a época de ouro da imprensa musical, IPC e EMAP (dona da Sounds) não interferiam no dia-a-dia dos jornais da música, até porque eles vendiam bem, custava pouco mantê-los e eram altamente rentáveis. A imprensa musical tinha um mercado cativo, tanto em termos de anunciantes como de leitores, afinal, isso foi antes do advento da internet, antes da ampla cobertura da música pop na tv, antes da enorme explosão de livros sobre rock e revistas especializadas. Sendo assim, o IPC e a EMAP, que pouco entendiam da cultura rock, deixavam que os seus jornais fizessem o seu trabalho em paz. Por que mexer em time que está ganhando? De resto, tudo isto aconteceu muito antes de a pesquisa de mercado passar a definir a orientação editorial de uma revista ou de um jornal.
Graças a este benéfico abandono, a imprensa musical do Reino Unido se desenvolveu num curioso espaço cultural autônomo, imune às pressões do mercado. Em termos estruturais, propriedade e distribuição (nacional e onipresente) dos periódicos seguiam padrões empresariais tradicionais; conteúdo e postura, porém - o espírito que emanava de cada manchete ou legenda -, eram underground. (...) Como resultado de todos estes fatores - donos que não enchiam o saco, magnitude do público leitor e o fato de a indústria fonográfica depender dessas publicações para anúncios e mesmo para cobertura editorial de fato, como nas resenhas e entrevistas -, os jornais musicais passaram a se sentir invencíveis e poderosos. Sentiam que podiam fazer tudo o que quisessem, e foi o que fizeram.
(...) Matérias de destaque com figuras icônicas como David Bowie podiam ser tão extensas e aprofundadas que eram divididas em duas partes, sendo publicadas em duas semanas consecutivas; uma resenha de álbum importante podia ser maior do que uma matéria de capa de hoje, chegando a 10 mil toques. Mesmo uma resenha de disco comum, na parte inferior da página, podia ter 5 mil toques (hoje em dia considera-se 800 toques extensão razoável, e algumas revistas querem mesmo que uma resenha descreva um disco em 300 toques). Todo este espaço permitia aos jornalistas especular, dar voltas em torno do tema, se embrigar de palavras ou usar o formato da resenha de álbum como pretexto para escrever um minimanifesto.
(...) A maioria dos leitores provavelmente comprava as publicações para ler as novidades, o guia de shows, as entrevistas com artistas bem conhecidos ou uma coluna de fofocas. Mas uma minoria considerável gostava das análises ultra-sérias, das especulações teóricas, das fervorosas odes proso-poéticas a discos favoritos e da meta-meta-conversa sobre o futuro do rock, o valor da música ou o sentido da crítica em si. (...) Os textos tendiam a ser exagerados e verborrágicos, cheios de termos especializados a ponto de parecer linguagem cifrada, e a polarização da opinião chegava a ser ridícula (artistas ou artefatos eram ou Deus ou totalmente lamentáveis/perniciosos/deploráveis). Mas, se você gostava deste tipo de crítica de rock, a leitura era eufórica, quase tão inebriante como a música em si. Quando era adolescente, eu fazia parte daquele núcleo minoritário de viciados na imprensa musical. Como escritor, iria alimentar esse núcleo interno, e, com isto, ajudar na gestação da próxima geração de viciados (a maioria dos quais faz o seu trabalho por meio de blogs - fanzines on line, basicamente -, e não mais nos semanários musicais, dos quais hoje só resta um, a NME, que não é nem sombra do que foi um dia) (grifos nossos)" (págs. 9-15)
Beleza. Estou racional e carismaticamente liberado da minha jihad. Resenharei apenas os cds que o meu contador geiger indica como capazes de oferecer um mínimo de qualidade e prazer na sua audição. A análise de Simon Reynolds não me desobriga, no entanto, de continuar refletindo sobre o estreitamento de minhas preferências e mantém de pé a plausibilidade de que a música pop enfrenta uma longa crise de mérito.
Qual a importância disto tudo? Não é apenas rock and roll, como cantava a tia Mick Jagger? A crise de uma cultura é também a crise de uma civilização, em termos macroscópicos.
Para aqueles que, como eu, ouvir música é um dos maiores prazeres do seu tempo livre - este "luxo imaterial" que as pessoas vivem reclamando que não têm em quantidade suficiente - acreditar que a humanidade, ou parte dela, tem folego e criatividade a externar pode ser algo mais para melhorar a qualidade de sua existência.
Mas quanto à lista dos cem melhores álbuns da década pela NME, sou mais a que farei no fim do ano, rs...
Ufa!!! Lista das 100 melhores músicas? Esta tarefa derrotaria Hércules...rs...Minha lista já tem umas 1000.
ResponderExcluirVou aguardá-la e depois a gente conversa! valeu o comentário.
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