O pacto autobiográfico
A obra O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet é uma coletânea de textos organizada e traduzida pela professora juizforana Jovita M. G. Noronha e publicada pela editora da UFMG, há dois anos atrás. Reúne textos de Philippe Lejeune, publicados nas últimas quatro décadas, tendo por tema a autobiografia, mas na acepção criada pelo autor, o pacto autobiográfico.
O interesse de Leujeune pelo tema iniciou-se em 1971, quando publicou
L'autobiographie en France. O pacto autobiográfico inicia-se com texto homônimo, escrito em 1996, no qual o autor buscou, e confessa-o desde já, estabelecer definições e conceitos com excessivo rigor acadêmico, o que torna a leitura das primeiras páginas árdua, enfadonha, e, saltando aos olhos, um tanto inconvicente. Lutando contra a desconfiança acadêmica da época, que considerava a autobiografia criação literária menor, Lejeune reúne todas as forças para apresentar o tema sobre uma perspectiva
séria.
Define autobiografia, econômica e satisfatoriamente, pouco modificando o que constava do dicionário Larousse (segundo afirmou mais tarde, cf.p.78), como:
narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade. (p.14).
A partir daí, no entanto, disseca a definição, não satisfeito com o átomo que encontrou e preferindo manusear as suas partículas integrantes, para concluir que a autobiografia, enquanto tal, exige uma relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem (p.15). Explorando esta relação, Lejeune coloca um problema pertinente:
Uma autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir do que ele produz.
Isto posto, o pacto autobiográfico, ao contrário do que uma primeira impressão faz sugerir, não diz respeito a um acordo, contrato, avença, compromisso, ou o que seja, entre quem escreve e quem lê. O pacto autobiográfico limita-se à autenticidade da assinatura, e nâo à semelhança entre o que é narrado e o que é vivido:
O primeiro ensaio prossegue, no entanto, sem ter oferecido maiores conclusões a partir do seu melhor ponto: o que há de verídico em uma autobiografia, e qual é a sua credibilidade, seja como literatura, seja como fonte histórica. Lejeune parece ter percebido que mais colocou questões do que se propôs resolvê-las. O que por si só não chega a ser de se lamentar, todavia:
No final das contas, esse estudo me parece ser antes um documento a ser estudado (tentativa de um leitor do século 20 para racionalizar e explicitar seus critérios de leitura) do que um texto 'científico': documento a ser adicionado ao arquivo de uma ciência histórica dos modos de comunicação literária. (p.46)
O terceiro ensaio, O pacto autobiográfico, 25 anos depois, escrito em 2001, já nos permite compreender como a eleboração de um blog pode ser interpretado sob uma perspectiva de pacto autobiográfico:
1) Ora, no pacto autobiográfico, como, aliás, em qualquer contrato de leitura, há uma simples proposta que só envolve o autor: o leitor fica livre para ler ou não e, sobretudo, para ler como quiser. (...) [Mas] você se envolve no processo; alguém pede para ser amado, para ser julgado, e é você quem deverá fazê-lo. (p.73)
Por que escrever um blog? A quem pedimos a aprovação? O principal leitor de um blog é como o principal ouvinte de um professor: ele próprio. Livros precisam vender. Livros precisam de aprovação. A aprovação de uma obra impressa tem a ver com o número de obras editadas. O mercado pode ser um juiz insensível à uma obra literária. O pacto autobiográfico de um blogueiro mantém-se com a sua regularidade.
2) À diferença de outros contratos de leitura, o pacto autobiográfico é contagioso. (p.74)
O blog criou seis bilhões de escritores em potencial.
3) Hoje, sei que transformar sua vida em narrativa é simplesmente viver. Somos homens-narrativas.(idem).
Não sei se foi dado o devido impacto à esta afirmação. Há décadas que os professores de história ensinam aos seus alunos: todo mundo possui uma história. Coisa muito diferente é dizer que todos somos narrativas. A vida do outro percebida como descrição e síntese.
Mais sobre esta obra em outros posts, fico por aqui, por enquanto.